As duas faces dos Estados Unidos e a manipulação das consciências, por Miguel Urbano Rodrigues
Tenho uma amiga que me ajuda a compreender a época caótica em que vivemos. É casada com um grande médico. Ele é marxista, revolucionário. Ela adopta uma posição progressista perante os grandes problemas da humanidade. Vão festejar em breve as bodas de ouro; após quase meio século continuam a amar-se.
O 25 de Abril abriu para ela um tempo de felicidade. Foi inicialmente uma activista empenhada. Participou em jornadas de solidariedade com a Reforma Agrária, ia aos grandes comícios e não perdia um discurso de Álvaro Cunhal e Vasco Gonçalves.
A partir de 76, à medida que a contra-revolução avançava, distanciou-se, amargurada. Mas continuou a acompanhar com interesse a evolução da História em Portugal e no Mundo. Lê jornais ditos de referência e vê diariamente os noticiários da televisão, mesas redondas e entrevistas com figuras públicas.
Não discute temas políticos com o marido. Comigo sim. Todas as semanas procedemos ao inventário de acontecimentos importantes. Para discordarmos quase sempre.
A grande ajuda que ela me presta é inseparável de um paradoxo. Sendo uma pessoa progressista, inteligente, generosa, sensível, com uma concepção ética da vida, é profundamente influenciada pelas mensagens mediáticas difundidas por um sistema cujo projecto de sociedade é incompatível com o seu.
Ao escutá-la apercebo-me das enormes dificuldades que nós, comunistas, enfrentamos no combate para mudar a vida num contexto social em que a grande maioria dos que identificam os males do capitalismo e desejariam viver noutro mundo são diariamente contaminados pelas mensagens do inimigo, e não estão preparados para as descodificar e rejeitar.
A Manipulação das consciências
Reescrever a história, falsificando-a de acordo com os interesses do imperialismo, tornou-se uma necessidade estratégica dos actuais senhores do mundo. Teses tão absurdas como a do «Fim da História», do americano Francis Fukuyama ( ex funcionário do Departamento de Estado ) inserem-se nas campanhas que pretendem apresentar o neoliberalismo como a ideologia ideal e definitiva.
Jean Salem, no seu importante livro Lenine et la Revolution (v .odiario.info de 08.07.2007) desmonta com lucidez a politica de satanização do socialismo e o seu requinte de perversidade.
Esse discurso promove a alienação progressiva de milhões de pessoas e atinge em grande parte o seu objectivo. Salem conta, por exemplo, que somente 20% dos jovens franceses que responderam a uma sondagem sabia que a União Soviética desempenhou um papel decisivo na derrota do Reich nazi. Noutra sondagem, 50% admitiam que a URSS havia sido aliada de Hitler na segunda guerra mundial. Um escritor, também francês, ouviu de uma amiga russa que na escola onde o filho estudava um professor dizia nas aulas que a batalha de Estalinegrado havia sido ganha pelos EUA. Perante a objecção de um dos garotos, afirmou que fora o bombardeamento da cidade pela Força Aérea norte-americana que destruíra o VI Exercito alemão de Von Paulus. A mentira fez estragos porque nem um só dos meninos tinha a noção de que a aviação de combate dos EUA nunca interveio na Frente Oriental.
O apagamento da memória histórica é um objectivo prioritário nas campanhas de diabolização do comunismo e de glorificação do heroísmo das forças armadas dos EUA, supostas vencedoras da última guerra mundial.
Pergunto: Quantos portugueses sabem que nos combates para a reconquista da ilha de Guadalcanal, apresentada como epopeia quase mítica, apenas participaram 10.000 soldados estadunidenses?
Muito poucos.
Quantos sabem que em 1943, na Batalha de Kursk, que quebrou a coluna vertebral da Wehrmacht, intervieram quase dois milhões de soviéticos enfrentando outros tantos alemães?
Muito poucos
Quantos sabem que o número de divisões alemãs que em Março de 45 se opunham aos anglo-americanos na Frente Ocidental era oito vezes inferior ao das que combatiam os soviéticos na Frente Oriental?
Muito poucos
Quantos sabem que na Batalha da Normandia, em 1944, o número de mortos ingleses e canadianos foi muito superior ao das perdas do exército norte-americano que, nos filmes de Hollywood, aparece como o vencedor da grande choque?
Muito poucos.
Quantos sabem que nos anos 30 o exército vermelho infligiu uma derrota esmagadora aos japoneses na Batalha do Kalkin Gol, expulsando-os da Mongólia?
Muito poucos.
Quantos sabem que em menos de uma semana de combates o exército vermelho, na sua ofensiva no Extremo Oriente, nas vésperas do bombardeamento de Hiroshima, matou e aprisionou mais militares japoneses do que as forças armadas dos EUA em quatro anos de guerra?
Muito poucos.
Cito apenas meia dúzia de exemplos para ilustrar o apagamento da história ou a sua deturpação no âmbito de campanhas que promovem a alienação e visam a impor a ideia de que da Revolução de Outubro de 17 somente resultaram males para a Humanidade, enquanto o balanço do capitalismo seria altamente positivo para o progresso e a democracia.
Essas mensagens não merecem credibilidade. São falsas. Visam difundir uma história imaginária e, através da manipulação das consciências, robotizar aqueles que as absorvem.
A ideia de que os Estados Unidos, não obstante a agressividade deste ou daquele Presidente e de erros e crimes cometidos em guerras absurdas, são uma sociedade profundamente democrática, continua, porém, a ser compartilhada por uma grande parte da humanidade.
A amiga progressista e inteligente que me ajuda a fincar os pés na terra para tentar compreender o presente é um exemplo expressivo dos efeitos devastadores da manipulação das consciências.
Recebe uma massa enorme de informações contraditórias que a perturbam e desinformam e provocam nela uma reflexão cujo efeito é a incompreensão da história, ou mais exactamente, a incapacidade de desmontar a mensagem ideológica de um sistema de exploração que desaprova.
Um dia, depois de assistir a um programa de televisão que evidenciava a integridade de um juiz dos EUA que enfrentou uma gigantesca transnacional e o governador do Estado em defesa de uma causa justa, comentou: «Eles têm coisas muito boas. A Justiça, por exemplo». Lembrei-lhe que um tribunal da Florida condenou a séculos de prisão cinco patriotas cubanos cujo «crime» fora investigar as actividades da máfia terrorista de Miami que ali conspira contra o regime de Havana. Contei-lhe que presos políticos porto-riquenhos, alguns tratados como animais, cumprem também penas de séculos de prisão por lutarem pela independência do seu país.
Abanou a cabeça, alegando que se tratava de excepções.
Noutra oportunidade, ao tomar conhecimento de crimes da CIA descodificados após 30 anos, desabafou : «Eles têm a coragem de reconhecer os seus erros, o que não acontece noutros países. E não esqueças Abu Ghrabi. Praticaram ali a tortura, mas os militares implicados nessas monstruosidades estão a ser julgados e a imprensa é a primeira a trazer a público o que se passou e a condenar em editoriais os abusos cometidos. A Constituição é democrática e as instituições funcionam.»
Eu rebati, uma por uma essas afirmações. Ela sorria, incrédula.
As reportagens sobre a garotinha inglesa sequestrada no Algarve comoveram-na,
assim como o movimento de solidariedade com os pais.
Quando argumentei que os media dedicavam horas ao assunto e o noticiário sobre civis assassinados pela tropa americana no Iraque e no Afeganistão e pelos israelenses na Palestina ocupava escassos minutos por semana esbarrei com uma muralha de incompreensão.
Perguntei-lhe se tinha acompanhado os massacres do Ruanda, tornados possíveis pela cumplicidade da França e dos EUA. Respondeu que não, e insistiu na minha insensibilidade perante o drama dos pais da criancinha inglesa.
Tentei sem êxito, incontáveis vezes, iluminar os mecanismos de um sistema de fachada democrática, como o dos EUA, onde instituições cientificas investem milhões de dólares na defesa de um macaco ou um urso ameaçados de extinção, mas onde o Congresso aprova leis como o Patriotic Act que viola direitos e liberdades constitucionais e abre a porta a perseguições racistas a milhões de cidadãos muçulmanos e a imigrantes de dezenas de países do Terceiro Mundo.
Não sabia também que a US Army instalou um parque de blindados sobre uma área arqueológica ao lado das ruínas da Babilónia e que a maior base aérea norte-americana no Afeganistão, Begram, funciona sobre o lugar onde, soterradas, se localizam as ruínas de Kapisa, a antiga capital do Reino Kuchano, criador de uma grande civilização desaparecida.
Desmontar a engrenagem da falsa democracia portuguesa é igualmente difícil para ela. O discurso de personalidades mediáticas que criticam o funcionamento do sistema no acessório, mas se abstêm de pôr em causa o capitalismo, impressiona-a, sobretudo quando assumem posições éticas na denúncia da corrupção ou de escândalos públicos.
Compreendo a perplexidade da minha amiga. A hegemonia exercida pelo Poder sobre a comunicação social manifesta-se em Portugal, como noutros países da União Europeia, de maneiras muito diferentes, por vezes subtis.
O silêncio dos governantes perante o branqueamento do fascismo é uma delas.
Com frequência intelectuais que se apresentam como distanciados do governo e até como adversários escrevem artigos, publicam livros ou dão entrevistas que se inserem em campanhas para reescrever a história. Em programas de televisão – e até em teses académicas – intelectuais supostamente democratas sustentam, por exemplo, que Salazar foi um governante autoritário, mas que o regime por ele instaurado não pode ser definido como fascista. O centenário do nascimento de Marcelo Caetano foi comemorado como grande acontecimento nacional. Dedicaram-lhe suplementos especiais, livros, longos programas televisivos. Objectivo da celebração da data: projectar a imagem de um estadista de altíssimo nível, um patriota português, cidadão integro, incompreendido, que pretendia estabelecer a democracia no Pais ao assumir o Poder.
Outra frente do combate da grande burguesia para manipular as consciências é a sua atitude perante ex-comunistas que foram expulsos do PCP ou dele se afastaram. De um dia para outro esses cidadãos passam a ser tema de absorvente interesse para os media. São promovidos a revolucionários exemplares que se bateram corajosamente para renovar o partido e democratizá-lo. Alguns acabam por aderir a outros partidos que antes combatiam, são nomeados ministros, publicam livros e transformam-se em anticomunistas inflamados. São então acarinhados pelo mundo do grande capital (gente como Zita Seabra, Veiga de Oliveira, Pina Moura, José Magalhães, Vital Moreira, Carlos Luís Figueira, Raimundo Narciso, etc.).
O fenómeno Bush
Qualquer cidadão sensato acabou na Europa por formar uma péssima ideia do Presidente Bush. Mesmo nos EUA o seu índice de popularidade caiu para um nível inferior ao que tinha Richard Nixon em vésperas de ser forçado a renunciar.
Mas a desaprovação da sua estratégia de guerras «preventivas» e a pressão popular para que traga de volta o exército de 157.000 homens que ocupa o Iraque não impedem que esse homem primário, ignorante e profundamente reaccionário conserve um imenso poder que utiliza contra a humanidade.
Já neste ano forçou o Congresso a aprovar um diploma que legaliza a tortura e conseguiu enviar mais 28.000 soldados para o Iraque.
Como é possível?
A manipulação das consciências tem como complemento a anestesia das consciências.
Na sociedade estadunidense o funcionamento da engrenagem criou em milhões de eleitores mecanismos defensivos que tendem a transformá-los em seres passivos, egoístas. Não desconhecem que as coisas correm cada vez pior nas guerras que as suas tropas travam em países longínquos. Mas em vez de reagir activamente, preferem esquecer, até porque as coisas também correm mal no país. Sabem vagamente que a dívida pública subiu para um patamar astronómico, que o défice comercial atingiu um nível alarmante e os gastos militares não param de subir. Que fazem? Com excepção de uma insignificante e corajosa minoria, assistem, passivos ao descalabro, absorvidos pelos seus problemas pessoais.
É essa atitude perigosa que permite a continuidade da estratégia irracional de George Bush.
Quando ele, dirigindo-se aos jovens da Academia Militar de West Point, em Junho de 2002, afirmou que a América estava ameaçada «por um punhado de terroristas e tiranos loucos» foi entusiasticamente aplaudido. Encorajado, acrescentou que iria «descobrir células terroristas em sessenta países».
Esse esboço da estratégia de agressividade planetária cujos planos já haviam sido elaborados foi então recebido com simpatia pela maioria da população. A grande imprensa apoiou-o.
Com excepção de uma minoria de intelectuais progressistas e de organizações como a de Ramsey Clark, o povo dos EUA não percebeu que se iniciava um processo que, tendo como alavanca as guerras «preventivas» iria conduzir a crimes que imprimiriam um carácter neofascista à política exterior do país. No seu desenvolvimento, sectores das Forças Armadas envolvidas nessas guerras distantes, nomeadamente uma parcela do seu corpo de oficiais, assumiriam gradualmente o papel de instrumento de crimes monstruosos que só encontram precedente nos cometidos pelas SS do Terceiro Reich de Hitler.
É terrível que a maioria da humanidade não tenha consciência dessa realidade.A ocultação da história real, substituída pela que a televisão e o cinema difundem hoje, vem, porém, de longe.
Nas escolas dos EUA a perigosa tese da «nação predestinada» com vocação para salvar a humanidade e redimi-la dos seus vícios, forjada no final do século XVIII, continua a moldar as novas gerações. Aos adolescentes não se informa que dois milhões de vietnamitas foram abatidos numa guerra abjecta na qual os rios foram envenenados e as florestas queimadas, guerra que terminou aliás com a derrota humilhante dos EUA. A invasão de Cuba em 1898 é apresentada como epopeia libertadora. Oculta-se que a Ilha foi tratada durante sessenta anos como colónia de novo tipo.
Segundo os manuais escolares, a ocupação das Filipinas no mesmo ano inseriu-se na repulsa dos EUA pelo colonialismo. Aos estudantes não se confessa que 600.000 filipinos foram massacrados na luta que o povo do Arquipélago travou contra os invasores.
***
O desmascaramento da engrenagem da mentira concebida para reescrever a história de acordo com a lógica e os interesses do imperialismo, sobretudo o norte-americano, é uma tarefa ciclópica.A estratégia agressiva e irracional de Bush merece hoje a desaprovação da maioria dos povos. É uma evidência. Mas da sua condenação passiva a uma atitude combativa medeia por ora uma distância enorme.
A atitude perante os crimes ecológicos constitui outro exemplo da passividade das massas neste momento de viragem de crise global da civilização.
Alastra a consciência de que os países industrializados, com os EUA na vanguarda, estão a destruir o ambiente e a consumir os recursos naturais não renováveis em ritmo alarmante. Se essa escalada prosseguir, a Terra será inabitável para o homem num período de tempo relativamente curto.
Que fazer?
Somente uma mobilização dos povos contra a estratégia de loucura que os
ameaça poderá evitar o apocalipse que se esboça já no horizonte, situação na qual as guerras genocídas são inseparáveis da devastação das florestas, da poluição dos oceanos, do envenenamento do ar que respiramos.Essa tomada de consciência, indispensável, não é, porém, uma certeza. Desconhecemos o desfecho da catástrofe em andamento. Mas sabemos que ele depende do homem.
Acabará a humanidade, através de milhares de lutas em diferentes lugares da Terra, por gerar as formas de organização, em moldes revolucionários – é a palavra - que desemboquem num confronto vitorioso com o sistema que ameaça destruí-la?
Podemos acreditar ou não no advento de um internacionalismo que assumiria características revolucionárias.
Mas ele está ao alcance da humanidade. Não é impossível.
Serpa, 13 de Julho de 2007
Artigo retirado de odiario.info
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